sábado, 15 de junho de 2013

ELEGIA




Tudo é demasiado tarde
Não somos dignos uns dos outros
Abri-vos portas rangei portas é demasiado tarde
Tudo é indigno de tudo
Vinde lagartos de aço saltai sobre todos nós
É demasiado tarde
Tudo acabou e todos chegámos demasiado tarde
Deixa-me fazer-te compreender
Deixa-me fazer mortalhas de linho para todos vós
Deixa de lutar contra a verdade
Deixa-me estrangular-te suavemente
Deixa-me desmembrar-te habilmente
As mortalhas de linho estão na moda este ano
Os lagartos de aço são o único método seguro de desmembramento
As urnas de cobre são o único método limpo de libertação
Não vês que todos chegaram demasiado tarde
Não ves que todos têm de entregar-se a mim
Linho e lagartos
Nenhum de nós poderá morar nesta planície
Não há outra saída senão o estrangulamento
Reclina-te simplesmente nesta rocha à luz do sol
Segura a tua cabeça
E submete-te às minhas mãos suaves
É a única saída
É demasiado tarde

Paul Bowles


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Uma história

«Uma história são pessoas num lugar por algum tempo. As margens da página, como o silêncio, estabelecem limites certos para que um conto não se confunda com o que não lhe pertence. Pode contar-se uma história enchendo uma caixa vazia ou desenhando paredes à volta de gente.
Esta é uma história de portas adentro.
Tudo se passa numa povoação encostada ao mar a alguns quilómetros de uma cidade média. De Inverno vivem ali pouco mais de dois mil habitantes, entre pescadores, gente pobre, famílias fugidas da urbe e alguns homens estranhos, apaixonados pelo mar ou desiludidos do resto.
Um prédio chegado à praia e um Inverno pesado e frio, de cobertores húmidos e doenças nos pulmões que silvam ao respirar. O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva. Dentro do prédio procura-se calor no que há: caldeiras, fogo, corpos e alimento.
A história é contada em oito dias, os últimos sete de um ano e o primeiro de outro. Nada saberemos do futuro e pouco do passado. Nesta história o tempo é medido em medos, um a cada dia, o tempo certo para que homens tremam e mudem.
O medo nasce em qualquer lugar, como erva daninha por dentro. O medo suporta tudo e cresce no escuro até ser adulto, até ser do tamanho de um homem, e lhe tomar o corpo e pensar por ele.
Neste Inverno as gaivotas são gritos com asas. Por estes dias o fogo é frio e anda nas ondas e anda por todo o lado.
No prédio, pessoas em cima umas das outras, divididas por tijolos e cimento, apartadas em apartamentos, para que não caiam e se baralhem as vidas de cima com as de baixo. Pessoas arrumadas como histórias em estantes; só que não é assim, quase nunca é assim.»


[Nuno Carmaneiro, Debaixo de algum céu; Colecção Prémio Leya (2012), 2013]

Artesanato (1966/70)



                                   


Nesse tempo os homens vinham com pistolas acesas nas mãos aos pontapés aos cegos que comiam peixe na tasca.
Ouvia-se o ponto muito repenicado dos que trabalhavam o primeiro dia na fábrica.
As borboletas e os periquitos preferiam a codorniz e a molécula.
Falava-se de peixe a cada esquina de peixe.
Os homens tinham violinos escondidos nas dobras das calças e outros andavam de bicicleta na avenida.
Os mosqueteiros cantavam a Marselhesa aqui e ali sem mais nada.
Os gatos surgiam de noite à janela a limpar bibelots.
Os meninos masturbados tinham as mãos cheias de calos e os olhos esbugalhados de surpresa.
Uma ou outra vez acontecia passar uma mulher bonita ou interessante e os homens assobiavam-lhe do café.
Os que tinham automóveis de corda lentamente os encordavam e ouviam o último LP dos Beatles.
O sr. Damião – estrábico – assomava à janela a sorrir à Toninha a olhar para a menina Elisa.
O ranho do bebé cristalizava no lábio e até fazia um vermelho bonito.
A menstruação era um mistério que causava asco.
Ah, nesse tempo tinha a mania que era bom e ia à missa de bicicleta com soquetes, ver as meninas.
[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]