«Uma história são pessoas num lugar por algum tempo. As margens da página, como o silêncio, estabelecem limites certos para que um conto não se confunda com o que não lhe pertence. Pode contar-se uma história enchendo uma caixa vazia ou desenhando paredes à volta de gente.
Esta é uma história de portas adentro.
Tudo se passa numa povoação encostada ao mar a alguns quilómetros de uma cidade média. De Inverno vivem ali pouco mais de dois mil habitantes, entre pescadores, gente pobre, famílias fugidas da urbe e alguns homens estranhos, apaixonados pelo mar ou desiludidos do resto.
Um prédio chegado à praia e um Inverno pesado e frio, de cobertores húmidos e doenças nos pulmões que silvam ao respirar. O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva. Dentro do prédio procura-se calor no que há: caldeiras, fogo, corpos e alimento.
A história é contada em oito dias, os últimos sete de um ano e o primeiro de outro. Nada saberemos do futuro e pouco do passado. Nesta história o tempo é medido em medos, um a cada dia, o tempo certo para que homens tremam e mudem.
O medo nasce em qualquer lugar, como erva daninha por dentro. O medo suporta tudo e cresce no escuro até ser adulto, até ser do tamanho de um homem, e lhe tomar o corpo e pensar por ele.
Neste Inverno as gaivotas são gritos com asas. Por estes dias o fogo é frio e anda nas ondas e anda por todo o lado.
No prédio, pessoas em cima umas das outras, divididas por tijolos e cimento, apartadas em apartamentos, para que não caiam e se baralhem as vidas de cima com as de baixo. Pessoas arrumadas como histórias em estantes; só que não é assim, quase nunca é assim.»
[Nuno Carmaneiro, Debaixo de algum céu; Colecção Prémio Leya (2012), 2013]