sábado, 13 de dezembro de 2014

O Alentejo espera por mim.


O Alentejo espera por mim.

O Alentejo espera, para sempre irá esperar, até ser totalmente despido de árvores, animais, pessoas, vida.


Haverá um tempo que nem o Sr. engenheiro irá levar a amante desta estação ao seu monte alentejano, nem um campo de golfe será regado. Só então poderemos voltar.

Depois de chuparem tudo teremos um lindo deserto onde construir uma casa.


Nossos filhos crescerão como cactos, lacraus bem instruídos, que só farão anos em ano bissexto, quando chover em lua cheia de Agosto.

Durarão séculos, enquanto desaparecem as babilónias que se encostam aos mares.


Um dia, depois de todas as civilizações, abandonarão seus buracos no deserto, para ocupar a desumanizada costa, e aí se alimentarem de peixe e algas.

Só então começará a Música.

sábado, 8 de novembro de 2014

Economia e sangue - capítulo 1 (reedição)




Mais uma vez ficamos engarrafados em mais uma via principal de mais uma mega-cidade qualquer.

- Um acidente - disseram, mas não passava de uma avalanche de criancinhas iraquianas decepadas, de um qualquer camião da BP. – Andam de barriga cheia, e depois admiram-se – cuspo eu com grande sabedoria, na exacta direcção do condutor.

-Apertem mas é os cintos, que esta merda vai girar – arranha o meu excelso condutor, enquanto sacode a verga das mudanças. E disparamos pela sangrenta auto-via, guinando e chiando com grande euforia, logo seguidos por dezenas de veículos provocados por tal desempenho motorizado.

Ao todo, segundo o jornal das 10 da manha, 10 carros se despistaram na coagulada estrada, sete pessoas morreram, três ficaram tetraplégicos, e um deixou de foder para sempre. Mas nós estávamos à frente, e em 15 minutos chegámos ao trabalho.

Mais um dia começou. Que tédio… Nada acontece na minha vida.

sábado, 16 de agosto de 2014

Salvar

Acordo fresco e pronto para mais um dia radiante na Lisboa que acontece.
E, como contribuinte atento e socialmente consciente, pergunto-me: 
Que banco irei eu hoje salvar?

Turístico Oceano


Assim que piso a rua, acontece outra vez.
Uma cotovelada numa Cannon, um empurrão numa Nikon, um rosnar para uma Casio, e um raspanço de barriga numa Sony.

O tempo não podia estar pior.
Uma maré alta de turistas barra o meu caminho para o emprego.
Lisboa na moda, Lisboa no fundo do poço, Lisboa à venda.

Sôfregamente empurro, abro caminho, escavo caminho, perco o meu caminho.

Desesperadamente, subo ancas, barrigas, ombros, cabeças, tento elevar-me acima desse mar de Lazer, duma classe média mundial à qual nunca pertencerei. À qual não tenho autorização de pertencer.

Subo, lutando contra correntes de gente relaxada, ou em processo de relaxamento, procurando sobreviver, trabalhar, pagar o que como, lutar para comer.

E para onde corro eu, através desse turístico oceano que inflama Lisboa?
Para a recepção de um hotel.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Que tempo?

Este é um tempo em que a esperança deixou de fazer parte da vida dos portugueses e dos cidadãos deste velho continente.


Este é um tempo em que tudo é incerto e ademais se cultiva o incerto, fazendo da incerteza o modo de vida.

Não basta ao ser humano a incerteza sobre o seu próprio fim; a civilização junta agora todas as incertezas: emprego, reforma, família, país e futuro.
A incerteza deixa os cidadãos à mercê dos donos do mundo, que decidem o destino da indústria, do comércio, da agricultura e dos serviços.

Outra das certezas é fazer crer que os debaixo viveram muito acima das suas possibilidades. E esta certeza ganha muitos dos que viveram mal, porque os debaixo gostam do modo como vivem os de cima e aceitam esta infâmia propagada por aqueles que em poucas semanas gastam o que eles não gastam na vida inteira.

Este é um tempo em que os governantes se moldam a estes parâmetros criando um espaço bloqueado criando a sensação de que não se pode sair porque forças exteriores omnipotentes o não permitem.

É um tempo que, para além do bloqueamento do espaço político partidário se fecha também o espaço da comunicação social, comunicando estes dois mundos entre si virtualmente, à margem da maioria dos cidadãos, que lhes viram as costas, às vezes com raiva.
 
Este é um tempo de exaltação individual para uns milhares de indivíduos determinarem o futuro de todos os outros milhões e milhões, fazendo destes gente sem esperança para construir o futuro de outro modo.
Nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, 66% dos portugueses renunciaram a utilizar uma arma que tinham à mão porque já não acreditam que as coisas mudem.

Os cidadãos respiram a podridão dos governantes que se governam a si próprios, aos seus, e ao grupo que os apoia.

Respiram escândalos, corrupção, compadrio, enriquecimento fácil, exaltação dos ricos, e, em contraste, vêem a sua vida empobrecer. Como uma prenda.

Respiram a impunidade de quem manda nos que governam e, em contraste, vêem o Estado cair-lhes no lombo com toda a força da máquina estatal impiedosa.

Respiram reformas que não param de se reformar e que são contra-reformas.


Respiram a mentira, a falta de honradez, a mesquinhez e a pobreza de espírito que vai do Relvas ao Coelho passando pelo Paulinho das feiras, o senhor de Boliqueime e os que no PS querem esta santa aliança.

Dizem coisas com ares de gravidade; só que nem reparam que já ninguém acredita neles.

O povo virou-lhes as costas. Àqueles que governaram, àqueles que não são capazes de propor uma saída, e ficam contentes por terem mais uns pós no seu mealheiro ideológico e do pequeno poder que o sistema oferece.

Este é um tempo terrível no que se refere à palavra mágica que dá força às mulheres e aos homens, mesmo nos momentos mais negros, a palavra esperança.

Mesmo que a esperança não abunde face à seca no reino das vontades individuais e coletivas, a verdade é que enquanto existirem mulheres e homens bons, generosos, honrados, solidários, igualitários, a esperança não pode morrer.

Neste tempo de miséria intelectual onde se exalta o mal como sendo um bem, é preciso não desistir e roubar, como Prometeu a Zeus, a esperança a quem a confiscou e com ela incendiar os corações. Em Portugal e na Europa.



terça-feira, 11 de março de 2014

Irrealismo ou barbárie



Na 10ª avaliação do programa de ajustamento português, publicada esta semana, o FMI apresenta as habituais projecções macroeconómicas para os próximos anos. Segundo o staff do Fundo, entre 2014 e 2019: 
  • a taxa de crescimento do PIB português em termos nominais estabilizará nos 3,6% (1,8% de crescimento real e 1,8% de inflação);
  • a procura interna crescerá entre 0% e 1,4%; e
  • a taxa de juro média da dívida pública a 10 anos aumentará de 3,4% para 4%.
Assumindo estes valores, o FMI estima que Portugal conseguirá reduzir anualmente o peso da dívida pública no PIB (conforme previsto no Tratado Orçamental) desde que o défice orçamental primário suba de -1,6% em 2013 para 1,9% em 2015 e 3,2% em 2019.

Já aqui questionei a razoabilidade de cenários construídos em torno destes valores (semelhantes aos que têm sido utilizados pelo governo).

Lembrei-me de olhar para a experiência histórica dos vários Estados Membros da UE, de modo a perceber quais os países e em que circunstâncias o cenário apresentado se verificou. O resultado é o que se segue.

Nº de anos (entre 1996 e 2012) em que o país em causa verificou as hipóteses indicadas
 
 Fonte:AMECO

Entre 1996 e 2012 é possível obter 446 observações válidas para os 28 Estados Membros da UE (446 observações = 28 países x 17 anos - 30 observações em falta por falta de dados). Neste periodo verificamos que:

  • só em 6,1% dos casos aconteceu um país ter um saldo orçamental primário superior a 2% num ano em que o PIB tivesse crescido 3,6% ou menos em termos nominais;
  • só em 3,8% dos casos se verificaram as condições anteriores, ao mesmo tempo que a procura interna não crescia mais do que 1,4%; e
  • só em 1,6% dos casos se verificaram as condições anteriores ao mesmo tempo que a inflação (medida pelo deflator do PIB) não foi além de 1,8%.

Por outras palavras, os pressupostos assumidos pelo cenário do FMI e do governo só se verificarm num número insignificante de casos nos últimos 17 anos.

Mas não é tudo. Vejam quais os países e os anos em causa (coluna da direita). Nenhum dos seis países tem problemas sérios de dívida externa. Só um desses países - a Itália - verificou nos últimos anos, à semelhança de Portugal, um agravamento das suas contas externas, o que em larga medida é explicado pela debilidade da sua estrutura produtiva (como procurei mostrar aqui). E o único ano em que a Itália atingiu os valores referidos, no período em análise, foi 2012 - um ano em que aquele país foi sujeito a um terapia de choque que dificilmente poderia prolongar-se por anos e anos.

Ou seja, não só o cenário do FMI e do governo é improvável em geral, como é praticamente desconhecido para países que tenham uma situação económica e financeira semelhante à portuguesa.

Só há duas explicações possíveis para que o FMI e o governo apresentem cenários tão improváveis: ou não acreditam nos seus próprios valores (que apresentam apenas para tentar convencer-nos que o programa de ajustamento português foi mesmo um sucesso); ou então estão a preparar-se para um ataque ao Estado Social de dimensões bárbaras, que não têm paralelo histórico. Ou então ambos.