No passado dia 29/12/2011, Ricardo Araújo Pereira fez parte do terceiro painel do ciclo «Desconferências», subordinado ao tema «O Fim da Crise», no Teatro S. Luiz, em Lisboa. Texto da sua intervenção (ou parte dele), recebido por mail:
A política morreu porquê?
Várias hipóteses:
1. A
primeira é a de que morreu porque deixou de ser necessária. O sonho dos
nossos antepassados cumpriu-se. Os portugueses vivem hoje num país
nórdico: pagamos impostos como no Norte da Europa e temos a qualidade de
vida do Norte de África.
Somos
um País onde nem Américo Amorim se acha rico. E porquê? Porque somos
dez milhões de milionários. Temos a vida que os milionários têm. Cada um
de nós tem um banco e uma ilha, é certo que é o mesmo banco e a mesma
ilha, que é o BPN e a Madeira, mas todos os contribuintes são
proprietários de um bocadinho.
2. A
outra hipótese é: não há política porque só há economia. E enfim, a
teoria medieval concebia apenas duas formas de governo: na primeira, o
fluxo do poder era ascendente. O poder emanava do povo e o povo delegava
nos seus representantes. Na outra forma de governo, o poder fazia o
percurso inverso: emanava do príncipe e o príncipe delegava nas outras
figuras do Estado. O nosso modelo é um híbrido, no sentido em que do
povo emana o poder para eleger os representantes na figura de pessoas
como Miguel Relvas e o seu vice-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. E
há depois o príncipe, que é a troika, do qual também emana poder. E a
troika delegou o poder nas mesmas pessoas. Portanto, há um
engarrafamento de poder nesta gente e, como é evidente, o poder que vem
de cima é mais forte do que aquele que nós mandámos para lá e é isso. O
poder deles tem mais força. E o nosso... voltou para trás.
Há problemas no facto de a política ter morrido:
1. O
primeiro é: a política percebe-se. Já a economia é muito mais difícil de
compreender. Eles simplificam, isso é verdade. Por exemplo, primeiro os
mercados começaram a dizer que nós éramos PIGS: Portugal, Irlanda,
Grécia, Espanha. PIGS, porcos! Depois disseram: Portugal é lixo. É uma
metáfora muito repetitiva, mas é clara. Facilita a compreensão. Reparem,
eu não sei ao certo o que é o "subprime", nem o que são "hedge funds",
mas quando uma pessoa me diz: "tu és lixo", eu percebo do que está a
falar. Eu sei exactamente. Claro que é triste esta liberdade vocabular
não ser permitida a quem está em baixo: a gente vê uma manchete a dizer:
"mercados consideram que Portugal é lixo", mas é impensável, na página
seguinte, ter: "Portugal vai tentar renegociar a dívida com os chulos".
Isso não nos é permitido. Eles têm o capital financeiro e o capital
semântico, tudo o que é capital, açambarcam, isto torna a vida difícil.
1.
Saiu agora um estudo que diz: "Portugal é uma democracia com falhas". Em
primeiro lugar, é importante elogiar um grupo de cientistas políticos
que é tão eficaz que consegue olhar para Portugal e ver uma democracia
com algumas falhas, e não uma falha com alguma democracia. É inquietante
sermos uma democracia com falhas porque, até agora, éramos uma
democracia sem falhas. Nós éramos felizes e não sabíamos.
2.
Depois, levanta-se outra questão, que é saber se se pode dizer
democracia com falhas. Eu estava convencido que a democracia ou é ou não
é, no sentido em que também não se pode dizer "ele é ligeiramente
pedófilo, ou ele estava mais ou menos morto". Ou está morto ou não está!
O facto de sermos uma democracia com falhas põe outro problema mais
inquietante: a partir de quando é que uma democracia com falhas passa a
ser uma ditadura com qualidades?
3.
Outras vantagens: assim que Passos Coelho foi eleito, nós deparámo-nos
com um problema interessante: Passos Coelho nunca fez nada na vida a não
ser política, JSD, por aí fora. O homem licenciou-se com 37 anos,
esteve ocupado a tratar de coisas políticas. No entanto, não tem
experiência política nenhuma, o que é difícil para um homem que só fez
política na vida. Lá está, ele teve empregos, mas só em empresas
administradas pelo Ângelo Correia. O primeiro emprego que teve que não
foi arranjado pelo Ângelo Correio, foi este, que nós lhe arranjámos.
Passos Coelho acaba por ser uma inspiração para todos os desempregados. É
possível, sem grande currículo, com alguma sorte, arranjar um emprego,
desde que, lá está, o outro candidato seja... o Sócrates. Para quem tem
pouca experiência, governar com a troika é como andar de bicicleta com
rodinhas e, portanto, tem esse lado vantajoso.
4.
Paradoxalmente, o nosso voto tornou-se mais importante. Antigamente
votávamos nas eleições nacionais portuguesas, hoje votamos nas regionais
alemãs.
5. E é
excelente por questões de respeito. Por causa da senhora Merkel. E digo
senhora Merkel com propriedade. Não dizemos o senhor Sarkozy ou o
senhor Obama. Nunca. Mas senhora Merkel dizemos. E temos em português
aquela expressão, quando nos referimos ao passado: "o tempo da outra
senhora". Este é o tempo desta senhora. Saiu uma senhora e entrou outra
senhora.
Queria
acabar dizendo que há esperança para nós. Porque a política parece ter
morrido, mas ainda há réstias de política. Vou dar dois casos:
1. O
assassinato político voltou e isso significa que há política. Em 1908
mataram D. Carlos. Em 2011 foi abatido a tiro, também por razões
políticas, o pórtico da A22. Há qualquer coisa no início dos séculos que
excita o gatilho dos conspiradores. E alguém leva um tiro. Enfim,
podiam ter morto o rei, mas entre D. Duarte e o pórtico, os atiradores
optaram, e bem a meu ver, pelo que politicamente era mais relevante. E
deram uma chumbada na portagem.
2.
A segunda razão pela qual devemos ter esperança é este incentivo à
emigração constante, que é de facto uma medida política. Geralmente, o
programa xenófobo, que é vasto e rico, consubstancia-se na frase "vai
para a tua terra", dita aos imigrantes. O nosso Governo tem este
programa ligeiramente diferente que é: "sai da tua terra!", dito aos
nativos. Fica difícil saber para quem é esta terra afinal. Eu quero
sugerir o Brasil como um destino interessante para nós. O Brasil é uma
terra de oportunidades e possibilidades de riqueza, como demonstra o
caso inspirador do Duarte Lima.