Se as pessoas sentem
que dão — trabalho, estudo, impostos — e não recebem nada em troca, o
governo está a trabalhar para a sua deslegitimação.
Aqui há tempos havia um enigma. Como
podiam os mercados deixar a Bélgica em paz quando este país tinha um
défice considerável, uma dívida pública maior do que a portuguesa e,
ainda por cima, estava sem governo? Entretanto os mercados abocanharam a
Irlanda e Portugal, deixaram a Itália em apuros, ameaçaram a Espanha e
mostram-se capazes de rebaixar a França. E continuaram a não incomodar a
Bélgica. Porquê? Bem, — como explica John Lanchester num artigo da
última London Review of Books — a economia belga é das que mais cresceu
na zona euro nos últimos tempos, sete vezes mais do que a economia
alemã. E isto apesar de estar há dezasseis meses sem governo.
Ou melhor, corrijam essa frase. Não é “apesar” de estar sem governo. É graças — note-se, graças — a estar sem governo.
Sem governo, nos tempos que correm, significa sem austeridade. Não há
ninguém para implementar cortes na Bélgica, pois o governo de gestão não
o pode fazer. Logo, o orçamento de há dois anos continua a aplicar-se
automaticamente, o que dá uma almofada de ar à economia belga. Sem o
choque contracionário que tem atacado as nossas economias da
austeridade, a economia belga cresce de forma mais saudável, e ajudará a
diminuir o défice e a pagar a dívida.
A Bélgica tornou-se assim num inesperado caso de estudo para a teoria
anarquista. Começou por provar que era possível um país desenvolvido
sobreviver sem governo. Agora sugere que é possível viver melhor sem
ele.
Isto é mais do que uma curiosidade.
Vejamos a coisa sob outro prisma. Há quanto tempo não se ouve um
governo ocidental — europeu ou norte-americano — dar uma boa notícia? Se
olharmos para os últimos dez anos, os governos têm servido
essencialmente para duas coisas: dizer-nos que devemos ter medo do
terrorismo, na primeira metade da década; e, na segunda, dizer-nos que
vão cortar nos apoios sociais.
Isto não foi sempre assim. A seguir à IIa. Guerra Mundial o governo
dos EUA abriu as portas da Universidade a centenas de milhares de
soldados — além de ter feito o Plano Marshall na Europa onde, nos anos
60, os governos inventaram o modelo social europeu. Até os governos
portugueses, a seguir ao 25 de abril, levaram a cabo um processo de
expansão social e inclusão política inédita no país.
No nosso século XXI isto acabou. Enquanto o Brasil fez os programas
“Bolsa-Família” e “Fome Zero”, e a China investe em ciência e nas
universidades mais do que todo o orçamento da UE, os nossos governos
competem para ver quem é mais austero, e nem sequer pensam em ter uma
visão mobilizadora para oferecer às suas populações.
Ora, os governos não “oferecem” desenvolvimento às pessoas; os
governos, no seu melhor, reorganizam e devolvem às pessoas a força que a
sociedade já tem. Se as pessoas sentem que dão — trabalho, estudo,
impostos — e não recebem nada em troca, o governo está a trabalhar para a
sua deslegitimação.
No fim do século XIX, isto foi também assim. As pessoas viam que o
governo só tinha para lhes dar repressão ou austeridade. E olhavam para a
indústria, e viam que os seus patrões só tinham para lhes dar
austeridade e repressão. Os patrões e o governo tinham para lhes dar a
mesma coisa, pois eram basicamente as mesmas pessoas. Não por acaso, foi
a época áurea do anarquismo, um movimento que era socialista (contra os
patrões) e libertário (contra o governo).
Estamos hoje numa situação semelhante. Nenhum boa ideia sai dos
nossos governos. E as pessoas começam a perguntar-se para que servem
eles.