Testemunho tão triste quanto certeiro da marafada-da-escrita-afiada Raquel Ponte
"Fuck [this reality], cause we've got music and poetry instead."
Há um punhado de anos atrás concretizei um sonho antigo: ser carteira.
Durante cinco rigorosos meses, que coincidiram com as estações das chuvas, acordei kantianamente às 4:30 da manhã para separar correspondência num armazém de cinco mil metros quadros, no Cais do Sodré.
Depois de artilhar o trolley com 30 quilos de mercadoria, subia à pressa, e a pique, até à Calçada do Combro. É que às 7h. era suposto começar o meu "giro". Com sorte, terminava por volta das 14h., mas tinha dias mais lentos, que se esticavam até às 18h.
Com o passar do tempo veio o frio; as cartas de amor, primorosamente caligrafadas, e os postais de longas distâncias, perderam a batalha do romantismo para as contas da edp, da epal, da emel, da lisboa gás, do meo, da zon, para as cartas de penhoras dos tribunais, para os créditos mal parados nos cofidis e restantes BEStas agiotas que nos obscurecem os dias com assombrosa austeridade.
Hoje li que o Goldman Sachs e o Deutsche Bank são os novos donos dos CTT, e que a eles se vão juntar mais amigos para o grande banquete dos chacais; que houve histórias de luvas - e Horta e Costas - por resolver no passado; que os meus ex-colegas vão fazer giros no IEFP - mãos honestas, vazias, sem luvas; que o volume de rigorosas cartas não pára de aumentar... nem a chuva... nem o frio; que nos matam as viagens, e o sonho e os redutos de amor que ainda temos em nós.
Coração vazio nesta honesta despedida."