A natureza, por sua vez, não é apenas um cenário que admiremos através duma janela — uma vista congelada numa paisagem ou num panorama estáticos. Tal paisagem de imagens da natureza poderá ser espiritualmente estimulante, mas é ecologicamente enganadora. Parada no tempo e no espaço, esta imagem faz com que nos seja mais fácil esquecer que a natureza não é uma visão estática do mundo natural mas uma longa e acumulativa história do desenvolvimento natural. Esta história envolve a evolução inorgânica tanto quanto a evolução orgânica.
Onde quer que estejamos, num campo, numa floresta ou no topo de uma montanha, os nossos pés assentam em eras de desenvolvimento, sejam os estratos geológicos, fósseis de vidas há muito extintas, a decomposição das recentemente mortas ou a calma excitação de novas vidas a emergir. A natureza não é uma «pessoa», uma «mãe carinhosa» nem, na crua linguagem materialista do século passado, «matéria e movimento». Nem sequer é um mero processo, que envolve ciclos repetitivos como a mudança das estações ou as subidas e descidas das actividades metabólicas. Melhor, a história natural é uma evolução acumulativa em direcção a sempre mais variadas, diferenciadas e complexas formas e relações.
Este desenvolvimento evolucionário de crescente variedade de seres é também um desenvolvimento que contém possibilidades latentes excitantes. Através da variedade, diferenciação e complexidade, a natureza, no decurso do seu próprio desenvolvimento, abre novas direcções para ainda mais ousadas e alternativas linhas de evolução natural. No grau em que os animais se tornam complexos, auto-conscientes e crescentemente inteligentes, começam a fazer escolhas elementares que influenciam a sua própria evolução. São cada vez menos passivos objectos de selecção natural e cada vez mais activos sujeitos do seu próprio desenvolvimento.
A lebre castanha que muda para branca e que vê um terreno coberto onde se pode camuflar está activa na procura da sua sobrevivência, não apenas a adaptar-se para sobreviver. Não se limita apenas de se ser seleccionado pelo ambiente: é seleccionando o seu próprio ambiente e fazendo escolhas que expressam, em alguma medida, subjectividade e arbítrio.
Quanto maior for a variedade dos habitats que forem surgindo ao longo do processo evolucionário, mais serão as formas de vida. Particularizando com o complexo neurológico, é como desempenhar um papel activo e arbitral na sua própria preservação. Entendendo que a evolução natural segue este caminho do desenvolvimento neurológico, origina vidas que exercem uma ampla latitude de escolha e uma nascente forma de liberdade no seu auto-desenvolvimento.
Considerando este conceito de natureza enquanto história acumulativa de níveis cada vez mais diferenciados de organização de materiais (especialmente formas de vida) e de crescente subjectividade, a ecologia social estabelece a base para uma total compreensão do lugar da humanidade e da sociedade na evolução natural. A história natural não é uma história de vale-tudo e de salve-se quem puder. É assinalada por tendências, direcções e, pelo menos no que aos humanos diz respeito, propósitos conscientes.
Os seres humanos e os mundos sociais que criaram, podem abrir um notável horizonte ao desenvolvimento do mundo natural — um horizonte marcado pela consciência, pela reflexão e por uma liberdade de escolha e de capacidade criativa sem precedentes. Os factores que têm reduzido muitas formas de vida a papéis fundamentalmente adaptativos na mudança ambiental estão a ser substituídos por uma capacidade de adaptação consciente dos ambientes às formas de vida existentes e emergentes.
A adaptação, na verdade, aumenta os caminhos para a criatividade, e a aparentemente cruel acção das leis naturais, os de uma maior liberdade. Aquilo a que anteriores gerações chamavam «natureza cega», para significar a ausência de qualquer sentido moral na natureza, transformou-se numa «natureza livre», uma natureza que lentamente vai encontrando uma voz e um sentido para aliviar as inúteis atribulações da vida, em todas as espécies, numa humanidade altamente consciente e numa sociedade ecológica.
O «princípio de Noé» de preservação de todas as formas de vida existentes, como um objectivo em si mesmo, um princípio avançado pelo autor anti-humanista Dr. Ehrenfeld, pouco significa sem o pressuposto, em última instância, da existência de um «Noé» — ou seja, de uma vida consciente chamada humanidade que possa salvar outras vidas que a própria natureza extinguiria, nas glaciações, secagem da terra, ou em colisões cósmicas com asteróides.
Os grandes ursos, os lobos, os pumas e tantos outros não estão a salvo da extinção apenas porque se encontram ao cuidado de uma putativa «Mãe Natureza». Se for verdadeira a teoria de que os grandes répteis do Mesozóico se extinguiram por causa das mudanças climáticas originadas pela colisão de um asteróide com a Terra, a sobrevivência dos mamíferos actuais pode bem não ser mais do que precária, face a uma outra qualquer catástrofe natural desprovida de sentido, a menos que exista uma consciência, ecologicamente orientada, que desenvolva os meios tecnológicos que os salvem.
A questão, portanto, não é a de que de qualquer modo a evolução social se firma por oposição à evolução natural. É como é que a evolução social pode situar-se na evolução natural e porque é que tem sido arremessada — escusadamente, como argumentei — contra a evolução natural, em detrimento da vida como um todo. A capacidade de ser racional e livre não basta para assegurar que essa capacidade se concretize.
Se a evolução social é vista como a potencialidade para a expansão dos horizontes da evolução natural até linhas criativas sem precedentes, e os seres humanos como a potencialidade de a natureza se tornar auto-consciente e livre, então a questão é porque é que estas potencialidades têm sido desviadas e como é que podem vir a concretizar-se.
As rupturas entre a evolução natural e a evolução social, a vida humana e a não humana, uma natureza parcimoniosa e uma humanidade devoradora, são sempre perversas e mal intencionadas quando são vistas como inevitabilidades. Não o é menos a tentativa reducionista de dissolver o social no natural, caindo a cultura dentro da natureza numa orgia de irracionalidade, teísmo, misticismo, para equiparar o humano a qualquer mera animalidade, ou para impor uma constrangedora «lei natural» a uma obediente sociedade humana.
Por muito que tenham tornado o homem um estranho na natureza, as mudanças sociais fizeram muito mais o homem um estranho dentro do seu próprio mundo social, com a dominação dos jovens pelos mais velhos, das mulheres pelos homens, dos homens por outros homens. Hoje, como durante tantos séculos, continua a existir opressão, existem opressores que literalmente possuem a sociedade e outros que são por eles possuídos.
Até que a sociedade possa ser reivindicada por uma humanidade unida, que queira usar a sua sabedoria colectiva, as suas realizações culturais, as inovações tecnológicas, o conhecimento científico e a sua inata criatividade em seu próprio benefício e para o do mundo natural, todos os problemas ecológicos continuarão a ter as suas raízes nos problemas sociais.
Murray Bookchin